quarta-feira, 28 de maio de 2008



Eu não me apaixono por ninguém, é só alguém que se aproveita da paixão que tenho sempre.

sábado, 24 de maio de 2008

Fogo na Noite


Tirou a tomada e a encaixou de volta, testou a posição do fio, apertou o botão de ligar vezes e vezes até se aborrecer e desistir. Xingou o pisca-pisca da árvore, querendo que o povo todo de Tawaian morresse. Falando em morrer, lembrou do cigarro solto no bolso e o acendeu. É. Primeira noite de Natal sozinho. Nem namoradinha de duas semanas, nem cachorro chamado Chico. Mãe no interior, pai sepultado, irmão em Santiago de Compostela. Um desastre.

Com a azia no peito, achou melhor acabar logo a noite. Cobriu a comida de cima da mesa e pensou que talvez no café comeria um pão com queijo cuia. Apanhou as velas vermelhas do jantar e as manejou em círculo, rodeando a árvore e suas bolas prateadas. Xingou mais uma vez o pisca-pisca defeituoso enquanto acendia os pavios com a brasa do cigarro. Era bom assim, essa luz mesmo que improvisada, essa sensação de festejo como em todos os outros vinte e três Natais. Soltou um quase-sorriso, apagou o filtro no chão e foi-se deitar.

Duas horas depois, sob o calor macio das chamas, as bolas prateadas começaram um chacoalho, um barulho vivo, como se em cada uma delas alguém as tocasse pelo lado interno. E na mais baixa, a superfície esférica se rompeu em inúmeras rachaduras, assim como pouco a pouco aconteceu nas outras. De dentro, suspendeu-se uma patinha marrom, em seguida uma cabeça de olhos fechados e um tronco pegajoso e pernas.

Em minutos, os filhotes de rena já estavam enfileirados no parapeito da janela da sala. Voaram.

conto publicado no Caderno Dez!, em 25/12/07. Natal gostosinho foi aquele.

domingo, 18 de maio de 2008

Recomendações Botânicas

Quando for à feira, nunca aceite as sementes de uma mulher com flores costuradas no vestido. Ela vai querer segurar seu punho e lhe colocar cinco sementes no seu bolso. Recuse-as, jogue-as no chão e as pise, se puder. Mas não cogite levá-las para casa, mesmo que a mulher insista e você queira livrar-se logo dela. E caso você aceite as sementes, não as plante em seu quintal. Mesmo que já esteja ali no seu bolso e a terra tão fofa, tão fértil esteja ali tão sua como também para as suas vontades. E se não vir mal nenhum em cavar um pequeno buraco entre as outras flores, em guardar as sementes na terra, em tapar novamente o buraco e sair satisfeito, não regue. Passe com a água em todos os cantos, menos naquele pedaço em que você introduziu as sementes. E se você regar, arranque as primeiras folhas que aparecerem. E se você não arrancar e deixar simplesmente as sementes brotarem, não apareça mais por seu quintal. Pois lá haverá o que surgiu: um duende, só com o tronco, os braços e a cabeça para a superfície, com a altura de uma mão aberta. Ele bate os dentes uns nos outros o tempo todo para exercitar, move as articulações com um som que assustaria qualquer coração e arremessa punhados de terra para os lados quando se entedia. O duende fica apenas à espera da hora em que você virá regar as plantas. E se você for, assobiando uma melodia antiga com a mangueira de borracha na mão, sentirá, enfim, uma mordida em seu tornozelo.

Não Mostrar para Mostrar

Por que Escrever e Não Mostrar?

Para voltar a si mesmo e aprender quais as frases que se quer de verdade dizer, independente de qualquer público, reação, engrandecimento social. Para entender o que é criar como se não houvesse mais ninguém esperando. Esse é o maior exercício, que eu peno pra passar: permitir que o mundo só volte a existir no instante em que a história está pronta. Então sim os vivos, então sim os outros olhos. Engavetar para ser ao máximo e aos poucos mostrando, testando se você ainda agüenta manter o que é. Agüento?

Por que Escrever e Mostrar?

Se eu não quisesse um mínimo de leitores para as minhas narrativas, nem quefosse apenas eu mesmo mais envelhecido, lendo no futuro e gostando de me retomar, não escreveria numa linguagem compreensível. Picharia os meus sinais no caderno, desenharia bonecos de palito sem falas, porque eu já saberia as falas na minha cabeça e não cometeria a redundância de repeti-las no papel. Eu contaria a história a mim mesmo, sentado na varanda. Depois entraria para a sala com um sorriso de leitor, guardando a minha história numa estante de minhas memórias, que qualquer dia poderia simplesmente desvanecer e levar tudo o que carregava. E faria diferença a alguém se minhas histórias sumissem? Talvez não, mas eu não sei o que realmente faz diferença, que não seja comida, água e teto. Nós criamos coisas extras para tomarem corpo de importância, apenas criamos, até que elas verdadeiramente o tomam. Esse é o meu laço com a escrita: um dia eu defini que é esse um rumo, e não ri, não titubiei, não perguntei se podia - acreditei.
Quando eu escrevo, eu ponho representações próprias de realidade numa linguagem de todos e não mais na minha (e quando eu penso, eu quase não preciso dessas palavras. as palavras vêm sempre depois que o pensamento se forma), o que pressupõe que muitas outras pessoas podem codificar o que ali está dito, puxar essas representações para si e sentir um pouco de outra coisa que não são elas mesmas. Porque aí está um dos sentidos da literatura, e das artes enfim: fazer com que uma pessoa sinta como é ser outra, e nessa pulsação, nesse vislumbre do que existe e não é si, perca o fanatismo e a covardia de tiranizar, desprezar e assassinar. Nesse caso, até o que eu escrevo serve. Posso não ter uma verdade grandiosa, um futuro promissor, uma prosa que valha algum trocado, mas tento mostrar como é ser um outro alguém que sente.