domingo, 7 de junho de 2009

O Homem Revoltado

"Por mais confusa que seja, uma tomada de consciência nasce do movimento de revolta: a percepção, subitamente reveladora, de que há no homem algo com o qual pode identificar-se, mesmo que só por algum tempo. Até então, essa identificação não era realmente sentida. O escravo aceitava todas as exações anteriores ao movimento de insurreição. Muito frequentemente havia recebido, sem reagir, ordens mais revoltantes do que aquela que desencadeia a sua recusa. Usava de paciência, rejeitando-as talvez dentro de si, mas, já que se calava, mais preocupado com seu interesse imediato do que consciente de seu direito. Com a perda da paciência (...), começa ao contrário um movimento que se pode estender a tudo o que antes era aceito. Esse ímpeto é quase sempre retroativo. O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante de seu superior, rejeita ao mesmo tempo a própria condição de escravo. O movimento de revolta leva-o além do ponto em que estava com a simples recusa. Ultrapassa até mesmo o limite que fixava para o adversário, exigindo agora ser tratado como igual. O que era no início uma resistência irredutível do homem transforma-se no homem que, por inteiro, se identifica com ela e a ela se resume. Coloca esta parte de si próprio, que ele queria fazer respeitar, acima do resto e a proclama preferível a tudo, mesmo à vida. Torna-se para ele o bem supremo. Instalado anteriormente num compromisso, o escravo lança-se, de uma vez (...), ao Tudo ou Nada. A consciência vem à tona com a revolta
Mas vê-se que ela é consciência, ao mesmo tempo, de um tudo, ainda bastante obscuro, e de um "nada" que anuncia a possibilidade de sacrifício do homem a esse tudo. O revoltado quer ser tudo, identificar-se totalmente com esse bem do qual subitamente toma consciência, e que deseja ver, em sua pessoa, reconhecido e saudado - ou nada, quer dizer, ver-se definitivamente derrotado pela força que o domina. Em última instância, ele aceitará a derradeira derrota, que é a morte, se tiver que ser privado desta consagração exclusiva a que chamará, por exemplo, de sua liberdade. Antes morrer de pé do que viver de joelhos".

Albert Camus

pp. 26-27, Record, 1999.

sábado, 6 de junho de 2009

Uma Breve Fala Sobre o que Aflige - II

Imagino um campo em que a grama seja tão vasta quanto o mar para um navegante. Mas em vez de uma superfície que se estende, há o mais tortuoso relevo, em que correr cansa e ficar parado desespera. Imagino que todos acordaram e descobriram a respiração ali. Imagino que um dia tenha sido eu. De tanto caminhar, encontrei um duende com a cor de tudo, que se não fosse por sua bata vermelha, haveria de se camuflar. Indago a ele: “Por onde ir?”. Ele responde que sabe bem. Se sabe, exijo que conte logo. “Mas é necessário me dar o que há de mais valioso”. Paro: “E o que é?”. O duende me fita. “Não se preocupe. Feche os olhos e eu o apanharei sem nem lhe tocar”. Até o momento eu não refletira de que possuía algo assim, minha única preocupação era achar o que fosse. Olho para mim e pergunto onde o que vale algo se instala. Nenhum pedaço da minha pele indica. Sei que se simplesmente o cedesse, não lhe sentiria a falta, já que o desconhecia de antemão. Aconteceria em um instante, sem pânico ou incômodo posterior. E ao fazê-lo, como tantos devem ter feito na dispensa de grandes culpas, ganharia a informação que enfim me levaria a um abrigo. Talvez a uma cidade onde haja todas as pessoas, que nunca vi, mas pareço conhecer. Entretanto, por abarcar que em algum espaço de mim há um grande valor, já me sinto na obrigação do seu zelo. Ter algo e cedê-lo sem antes encará-lo. O desconforto aparece, qual o reconhecimento da força. Não, é o próprio reconhecimento da força, mesmo que fundado no mistério. O duende me aguarda. Olho para o campo, aberto e talvez infinito. Seguiria por ele para ao menos guardar o que me compõe e tampouco sei o que é?

Uma Breve Fala Sobre o que Aflige - I

Há um tempo, que não me importa mais precisar, toda vez que me lanço uma pergunta honesta, vejo nela e atrás dela, a verdadeira, a pergunta das perguntas: o que fazer? Já não posso ignorar a frequência em que tem aparecido. Provavelmente, com a mesma dimensão numérica em que se acumulam as respostas. Tantas, e todas um desvio. Deveria haver uma apenas, mas não metafisicamente, como uma verdade que paira inacessível em essência, mas uma em que eu acreditasse tanto que logo se fizesse única na pureza de sua força. Minto ao dizer que não sei qual ela é em mim, como também me engano ao dizer que sei, pois ela ainda não me representa, ainda não permiti por todo que ela me representasse. Porém a conheço, a intuo. Quando pondero com mais seriedade, ela se sobressai. Só a rejeito porque ela guarda o perigo que o mundo instala, um perigo que me obriga a adaptá-la em inúmeras respostas. Penso às vezes, com positividade, serem somente variações da única, só que não, são outras e me levam a outro lugar. A resposta se quer bruta e se quer realizar como é, por isso me cobra mês a mês, em forma de qualquer pergunta. Como valer enfim a resposta que se tem é a angústia, o estar diante do perigo.

quarta-feira, 25 de março de 2009

A Experiência de 68

Tivemos na história recente uma experiência que até então nos faltava: um levante popular direcionado para além de qualquer estrutura. O Maio de 68 não foi um movimento de política estudantil no sentido formal, embora isso também tenha se inserido, não foi um estopim patrocinado pela esquerda soviética ou maoísta, embora isso também tenha participado, tanto diretamente, quanto pela sua áurea de oposição que contaminava à época, mas foi justamente um movimento existencial. Não aconteceu para a revolução comunista, o que inclusive motivou críticas do Partido, que, sem entender o que ocorria, chamou aquilo tudo de uma grande baderna. Não aconteceu para a tomada do poder, pois mesmo tendo conseguido parar a França e fazer De Gaulle fugir com o temor de ser deposto, não houve uma investida sincera para tal. Não aconteceu para pedir grandes reformas, embora alguns segmentos sociais tenham aproveitado a situação para conseguir reajustes e melhorias. O poder estava vazio, não parecia interessar por ora. A vontade era presenciar uma existência de extrema humanidade e sem qualquer tipo de burocracia, a partir do ponto em que uma insatisfação pura de viver sob a ordem se instaurara em cada um. A busca, que ultrapassava o niilismo ou alguma perspectiva pessimista para todo e qualquer tipo de interação, se fazia no encalço de uma conjuntura social em que o homem pudesse desenvolver ao máximo sua potência e alcançasse uma plenitude diante de sua própria dignidade.

O filme Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni, funcionou como uma alegoria e uma análise para este momento. Na estória, um rapaz atira num policial durante uma ocupação estudantil da universidade e foge. Ao sair do esconderijo, caminha até um aeroporto de aviões de pequeno porte, pula o muro e rouba um. Ao mesmo tempo, uma secretária pega um carro num dia de trabalho e escapa para as estradas da Califórnia. Os dois terminam por se encontrar, um no chão e o outro no céu. Em determinado momento, estão lado a lado e caminham pelo deserto, rindo, sujos de areia, até chegarem à beira de uma grande vala, onde há um terreno árido, formado apenas por erosão. É o Zabriskie Point, onde eles descem e se beijam, onde imaginam uma multidão de casais, nus, fazendo o mesmo. E aí que está o ponto que Antonioni traz à tona sobre a conseqüência do Maio de 68: a visão do nada. Para além da atual organização, para além da postura que o homem assumiu para si como um modelo de estar no mundo, há somente uma vala árida no meio do deserto. Viver à margem deste processo assim como ele se encontra é consentir em viver onde ainda não há nada. Tanto que no final do filme, que é entardecer, os dois se despedem, ele volta para a morte e ela para casa, entendendo que haviam chegado ao limite.

A experiência de 68 não deixou apenas alterações comportamentais. Também há nela a herança de uma extensão de mundo, da radicalização de todos os conceitos modernos e o que sobra disso. Não há como acusar os estudantes franceses e os jovens operários que aderiram de um gratuitismo que desembocou em outro. Às vezes é preciso causar todos os prejuízos como paralisar um país e levantar camadas de absurdo para o ar não para se mudar concretamente as coisas, mas para se chegar a uma pergunta essencial que toca todo o nosso destino. E no caso, a que ficou de Maio de 68 poderia ser: de que forma chegaremos a um modo de vida que privilegie o homem se experimentar por inteiro?

terça-feira, 24 de março de 2009

Hoje pela Manhã - Três Aforismos

Não vejo como conciliar espírito juvenil e planejamento. O que um tem de mais impetuoso, e por isso de certa ótica saudável, pois é a vida se arremessando à ela mesma e ao mundo, querendo estar e entender tudo o que a cerca, o outro tem de mais intimidador, pois é a presença anterior do futuro, a lembrança de que o gratuitismo e a vontade pura de poder nos desviará de uma ordem que é a nossa vida enquanto segurança. A geração 00 é o auge da segurança, o que também significa ser o auge dessa conciliação improvável, na qual o planejamento acaba por se sobrepor.

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Um curso de graduação em Filosofia é um atentado contra ela mesma. Na obrigatoriedade de um estudo concentrado, ou o aluno consegue desprender-se de todos os conteúdos e os transforma em informação, em mera imagem para trazê-los para si, o que nada tem a ver com uma vontade de entendimento, ou ele tenta absorver tudo numa atitude engajada e se sufoca. Sobra então ou um estruturalista, apenas alguém que lida com fatos sem ativá-los, sem saber deles a coesão consigo e com o mundo, ou um fugitivo, alguém que teve no ambiente universitário a sensação de inserir-se e ganhar intimidade com o que há de filosófico, mas escapou antes que este mesmo ambiente lhe desse o oposto. A Filosofia precisa de tempo. Nunca nela pode haver um prazo de entendimento. Não que eu faça disso uma apologia ao que não é rigor, pois claro que também é necessário para a atitude filosófica uma disciplina e um esforço para além do desejo, mas uma defesa de um rigor que se defina naturalmente.

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Nada parece mais infantil do que descrever uma tristeza sem fundamento algum, efeito de uma causa difícil. A mesma tristeza de quem ao chegar em casa tem almoço com quatro porções e uma cama para se deitar. A mesma de quem não perdeu ninguém próximo e tem até uma moça bonita para se aninhar quando a tarde é longa. A de quem possui fotos antigas e em nenhuma delas via um sinal do que não fosse transbordamento. E o triste, como toda criança, queria tentar explicar-se, mas ele ainda não aprendeu todas as palavras e o outro é sempre o adulto, o grande adulto.